Final dos anos 1980. Era estudante do curso de graduação em Comunicação na PUC-Rio. As matérias de cinema me interessavam especialmente. Lembro que o então professor do curso, Miguel Pereira, numa aula sobre neorrealismo italiano, comenta sobre seu encanto ao assistir “A Grande Cidade” (1966), de Cacá Diegues. Disse: “Fiquei admirado”. Sentada numa carteira perto da janela da sala, anoto suas observações no meu caderno de capa azul. Anos depois, vi o filme de Cacá. Tive receio que os comentários elogiosos de Miguel pudessem atrapalhar minha experiência do filme. Que nada! Eu também fiquei maravilhada. A trilha sonora comovente (do popular ao erudito – Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Zé Keti), a câmera habilidosa de Dib Lufti, o personagem-narrador de estilo brechtiano (Antônio Pitanga), o registro documental das paisagens da cidade carioca (o centro, o jardim do Passeio Público, a praia de Ipanema, a favela da Mangueira), tudo remetia a um belo cartão postal do Rio virado ao avesso e, nem por isso, menos adorável.
O filme de Cacá é uma saudação à cidade carioca carregado da magia do cinema (tem o vaqueiro, o malandro, a noiva), dos sonhos de futuro (a banca de jornal com revistas onde vemos na capa os jogadores de futebol, Pelé e Garrincha) e das memórias de um Brasil que começava a viver sob a ditadura militar (os tanques do exército pela orla da praia na Barra da Tijuca). A abertura e o final são marcantes. Pitanga perambula pelas ruas do Centro da cidade, dançando e perguntando aos passantes curiosos com a presença da câmera: “Você vai ao cinema? A que horas você dorme? O que você faz no fim de semana? Que horas você janta?”. A câmera de Dib Lufti acompanha o balé performático e gritado do ator (faz o personagem Calunga). “O cinema é o templo das magias! E a vida é uma só!”. Também pelas ruas de Paris, começa o filme de Jean Rouch e Edgar Morin, “Crônica de um Verão” (1961). Também no filme francês, duas moças fazem perguntas aleatórias aos transeuntes. No filme de Cacá, porém, existem a festa e o sol que iluminam e aquecem os corpos dos amantes (Luzia e Jasão). Existem personagens que olham para a câmera, questionam o espectador, rompendo a quarta parede e trazendo ponderações sobre o “povo”, o “medo”, o “nordestino migrante”, o bem e o mal. No final, Pitanga perambula novamente pelas ruas do Centro durante o Carnaval. Dessa vez, está assustado. Ele viu demais. Viu a polícia matar à luz do dia Luzia (Anecy Rocha) e seu noivo, Jasão (Leonardo Villar). Testemunhou o assassinato violento em meio às barcas da Praça XV.
Essas imagens estão impressas na minha memória. Não sei por quê. Talvez porque evoquem o balé de um corpo preto que perambula triunfante pelas ruas da cidade. Ou talvez porque meu antigo professor, Miguel, tenha dito que o filme era admirável. Não sei. Prefiro acreditar que “A Grande Cidade” me mostrou um cinema inovador, urbano, distante dos sertões de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e de “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos. Me mostrou um cinema que dança vigoroso em meio às tragédias urbanas.
Andréa França
Professora e pesquisadora – Departamento de Comunicação da PUC-Rio