Malu Carvalho*

Quadra do Cacique. Acervo Cacique de Ramos/Márcio Lopes.
Uma quinta-feira de chuva em dezembro, duas da tarde. O portão da Rua Uranos 1.326, em Olaria, Zona Norte do Rio, estava aberto como de costume. Na quadra do Cacique de Ramos, instrumentistas da Bateria Tamarindo de Ouro se organizavam para uma apresentação, enquanto o diretor de harmonia, Sidney Machado, se entretinha assistindo ao desfile de celebração do Dia Nacional do Samba de 2024. Os sons se sobrepõem, mas cada qual continua na sua atividade de interesse. Tem sido assim desde 1961, quando moradores de Ramos, Olaria e bairros próximos fundaram o clube social, que ajudou a forjar a identidade da comunidade. A agremiação é tocada por pessoas que ali cresceram e construíram memórias como um quintal de casa, onde jogavam bola, soltavam pipa e ouviam samba em torno de uma centenária tamarineira.
– A gente jogava bola, pulava o muro para roubar tamarindo, fizemos várias coisas. E tínhamos um bloco, do outro lado da linha do trem. Mas, depois que criamos o Cacique, foi só Cacique – lembra Sidney Machado, integrante da velha-guarda mais conhecido como Chopp.

Sidney Machado, o Chopp, integrante da velha-guarda e diretor de harmonia, pulava o muro para pegar tamarindo na infância. Créditos: Acervo Cacique de Ramos / Márcio Lopes
A ideia de fundar a agremiação veio de jovens que desde o fim dos anos 1950 reuniam família e amigos para curtir o carnaval e cantar sambas. Em 1961, os irmãos Ubirajara (Bira) e Ubirany Félix do Nascimento, e os amigos Walter “Tesourinha” Oliveira e Aymoré do Espírito Santo se juntaram para criar um único bloco.
Desde então o grupo se consolidou e passou a fazer parte da história de gerações de famílias da região, como a de Júnior Nova Geração, intérprete da agremiação, que cresceu vendo avós e bisavós confeccionavam à mão as fantasias com papel crepom colorido:
– Minha família é toda do samba, e o Cacique fez parte dessa trajetória. Quando tinha desfile em algum lugar, meus avós e bisavós estavam. Faziam a fantasia de cacique com papel crepom para estar junto da família caciquiana.

Crianças se preparam para desfilar na Avenida Rio Branco nos anos 1970. Crédito: Centro de Memória Cacique de Ramos
Para arrecadar fundos para a realização dos desfiles e aumentar os laços da comunidade, o Cacique começou a promover bailes e festas em clubes da região, como o Greip Penha, a Cova da Onça, em Brás de Pina, a Associação Atlética de Ramos e o Clube Paranhos, em Olaria.
Organizavam bailes e eventos em clubes da região, enquanto o bloco desfilava na antiga Rua das Missões – renomeada Rua Nossa Senhora das Graças no início dos anos 1960.
O primeiro desfile na Avenida Rio Branco, em 1963, foi tenso: o Cacique foi surpreendido e imprensado nas laterais da avenida por outro bloco, o Bafo da Onça, que tinha mais tradição no carnaval. A agremiação voltou ao Centro em 1964, com sucesso. O bloco se expandiu pelo Rio e alcançou foliões de outras partes da cidade.
– O Cacique é um fenômeno muito regional, mas na passagem de 1964 para 1965 ele deixa de ser um bloco apenas do bairro de Ramos e passa a ser do Rio de Janeiro todo. Ele se torna um bloco de multidão, porque consegue trazer pessoas de várias localidades – explica o historiador Walter Pereira Júnior, coordenador do Centro de Memória do Cacique de Ramos.
Essa virada no aumento do reconhecimento teve um motivo com nome, ritmo e melodia: o samba “Água na Boca”. O compositor, Agildo Mendes, tinha apenas o início do samba e buscava alguém para fazer a segunda parte. Como o carnaval de 1964 se aproximava, e ele ainda não havia achado um parceiro para terminar a música, resolveu, então, incorporar o “lá lá lá lá lá” provisório como definitivo.
– Mendes tentou apresentar o samba em rádios e para cantores. Nenhum cantor deu bola, ninguém quis gravar, então ele apresentou nos ensaios de pré-carnaval do Cacique de Ramos, e o samba aconteceu muito. Ele cresceu na quadra – conta Walter.
Diretor de bateria do Cacique na época, Mestre Dinho deu um empurrãozinho quando inventou uma “pulada” com o “ei” na música. Mendes não gostou muito da mudança, mas não tinha mais volta: “Água na boca” já havia caído nas graças do público.
– Eles foram desfilar, em 1964, e o samba fez sucesso espontaneamente. Ele não estava gravado em lugar nenhum, mas tomou conta da avenida. E o Cacique ficou marcado como um bloco da cidade, para além dos limites de Ramos – completa o historiador.
Em 1967, o Cacique conquistou a primeira sede fixa, na Rua Tenente Pimentel, em Olaria. Foi em 1975 que a agremiação encontrou o lugar que seria um traço da sua identidade até hoje, na Rua Uranos. O espaço se tornou parte da paisagem afetiva dos bairros adjacentes e se transformou em um grande celeiro da música brasileira. Não foi algo programado, aconteceu a partir de encontros informais de amigos que chamavam outros, levavam instrumentos e, assim, criaram uma roda de samba.
– Acima de tudo, surgiu um pagode, a união de sambistas com interação de pessoas, comida e bebida – afirma Walter.
O espaço era palco de inovações na produção musical e testava instrumentos que não eram utilizados em outras rodas de samba. Almir Guineto, do Morro do Salgueiro, foi levado para conhecer o Cacique e começou a testar o banjo. O instrumento casou com o repique de mão, inventado por Ubirany Félix do Nascimento, e com o tantã, tambor adaptado por Sereno, outro compositor da casa.
Nessa roda de samba informal, compositores começaram a apresentar composições, e Beth Carvalho, que já tinha seis discos gravados, foi conhecer a quadra, convidada por Alcir Portella, ex-jogador do Vasco e sambista. A artista virou presença constante nas rodas de samba de quarta-feira e o envolvimento dela foi tanto que lhe rendeu a coroação de madrinha da agremiação.
Em um depoimento publicado na página do Facebook do Cacique de Ramos, Beth Carvalho lembrou quando foi convidada pelo sambista para dar uma passadinha em Ramos e ouvir o que se fazia por lá. E, desde então, lembrou a cantora, ela inseriu as idas à quadra em sua agenda..
– Alcir falou: “Vou te levar em um lugar que tenho certeza que você vai gostar, porque eu sei que você gosta do samba na intimidade”. Ele tinha toda razão, eu fui em uma quarta-feira e conheci uma turma que era o grupo Fundo de Quintal amador. Então comecei a frequentar semanalmente, tinha o jogo de futebol de salão, churrasco, cervejinha e pagode, aquele pagodinho pequenininho, de 15 pessoas.
Em 1978, Beth convidou o Cacique de Ramos para a gravação do disco “De pé no chão”. Além da sonoridade, dos instrumentos musicais e das composições apresentadas, também levou para o estúdio pessoas que frequentavam a quadra para fazer um astral, um “burburinho”, na gravação.
Entre os sucessos do disco, está a faixa “Vou festejar”, samba de Jorge Aragão, Dida e Neoci Dias cantado dois anos antes nos desfiles do Cacique. A canção foi gravada por Beth de forma que remetesse aos blocos, com a marcação dos tamancos do Cacique, e se tornou um fenômeno do samba. O clipe da música, lançado no programa Fantástico, da TV Globo, foi gravado na quadra.

Pagode do Cacique de Ramos na Rua Uranos, Olaria. Contracapa do disco De Pé no Chão de Beth Carvalho, 1978.
A notoriedade fez com que a roda de samba crescesse e mais compositores apresentassem suas músicas na quadra. Arlindo Cruz, Luiz Carlos da Vila e Sombrinha passaram a integrar o grupo. Além dos improvisadores do partido-alto, os partideiros Beto sem Braço, Jovelina Pérola Negra, Neoci e um jovem, conhecido como Zeca Pagodinho. O Cacique de Ramos se tornou o epicentro do movimento que se alastrava pelo Rio e envolvia outras rodas de samba do subúrbio: o pagode.
No Facebook do Cacique de Ramos, há um depoimento de Zeca Pagodinho em que ele conta como, naquele tempo, era o sentimento dos integrantes da roda de samba. Segundo ele, as pessoas não tinham o desejo de se profissionalizar. A ideia era se divertir e ver as músicas na boca do povo.
– A gente não tinha a pretensão de fazer sucesso. O sucesso era quando todo mundo cantava o samba que a gente tinha acabado de fazer no botequim do lado. Não tinha esse lance de virar artista, a gente só queria cantar samba.
Das rodas de samba debaixo da centenária tamarineira surgiu o Fundo de Quintal. Depois de participar do projeto de Beth Carvalho, o grupo lançou o primeiro álbum, “Samba é no Fundo de Quintal”, em 1980, com a sonoridade de elementos característicos: o banjo, o repique de mão e o tantã. Originalmente formado por Bira Presidente, Ubirany, Almir Guineto, Sereno, Sombrinha, Neoci e Jorge Aragão, o Fundo de Quintal chegou a contar com Arlindo Cruz e Cléber Augusto entre os participantes. Hoje formado por Bira Presidente, Sereno, Ademir Batera, Júnior Itaguaí, Márcio Alexandre e Tiago Testa, ele faz shows pelo país e ainda se apresenta em eventos do Cacique.
A agremiação não parou de renovar seus talentos. Há aqueles que surgem da casa e os que vão conhecer a quadra e permanecem, como a atual Intérprete Oficial Feminina, Margarete Mendes, a Negona do Axé. A artista, que começou a frequentar as rodas de samba apenas como foliã, passou a dar canjas e hoje faz shows regulares na quadra.
– Numa apresentação, Bira Presidente subiu ao palco e tirou o microfone da minha mão, logicamente com gentileza. Eu fiquei nervosa, achando que tinha feito alguma coisa de errado, me senti pequenininha, mas foi para me nomear Intérprete Oficial Feminina. Foi engraçado e espetacular – recorda a intérprete.

Margarete Mendes. Crédito: Reprodução Instagram Cacique de Ramos
Em 2024, o Cacique de Ramos foi declarado como Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro. A nomeação reconhece a história do clube no carnaval carioca e a influência na música brasileira para preservar a herança histórica e cultural.
A data oficial de fundação,20 de janeiro, celebra São Sebastião, eleito o padroeiro do bloco. A ligação com as religiões de matriz africana também está presente desde a origem: Ubirany e Ubirajara, o Bira Presidente, são filhos de Dona Conceição, ialorixá batizada por Mãe Menininha do Gantois, da Bahia. O registro como grêmio recreativo foi uma estratégia para formalizar como instituição ligada à cultura do samba e à cultura negra. Segundo o diretor do Cacique, Márcio Nascimento, a interação da comunidade e a filosofia de manter o espaço sempre aberto, com eventos gratuitos, são reflexos da matriz espiritual da agremiação.
– A porta está sempre aberta. Está em casa triste e sozinho? Vem para cá. Você não vai pagar nada para entrar, vai beber sua água e curtir os grandes sambistas da casa. Domingo não se cobra, e quando fazemos algo durante a semana, a segunda sexta-feira do mês é sempre de graça – afirma.
Em fevereiro deste ano, as atividades comunitárias se ampliaram, aos sábados, com aulas e oficinas de samba no pé, técnicas de expressão corporal, palestras e bate-papos sobre a história do samba e do carnaval com sambistas e historiadores. Oficinas como estas são comuns desde 2005, quando a assistente social Luiza Helena Ermel, então professora da PUC-Rio, introduziu o Cacique de Ramos no projeto Som do Rio, desenvolvido pela Universidade. Foram criados núcleos de estímulo à transmissão de saberes coletivos ligados às musicalidades afro-brasileiras em diversos bairros e comunidades da cidade.
Na quadra da agremiação foram realizadas oficinas de percussão, cordas e partido-alto com músicos da casa como professores. Em vídeo do projeto é possível ver Gabrielzinho de Irajá, no início de sua trajetória na arte do partido-alto, em uma oficina ministrada por Renatinho Partideiro. A partir de 2018, Luiza Helena elaborou e executou a oficina Crias da Tamarineira, projeto em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. Seus laços com a agremiação se estreitaram, e desde 2020 é integrante do Centro de Memória do Cacique de Ramos como elaboradora de projetos.
Por causa da histórica presença no carnaval carioca, muitas pessoas veem o Cacique como uma escola de samba, mas os esforços na contribuição do lazer na comunidade o reforçam como bloco e grêmio recreativo.
– É muito bacana ser bloco. Muita gente pergunta por que não viramos uma escola de samba. Porque iríamos perder tudo isso – relata Nascimento.
No carnaval, a agremiação tradicionalmente abre os festejos no domingo e encerra na terça-feira, na Avenida Chile, no Centro. Os 270 ritmistas da Bateria Tamarindo de Ouro tocam, entre outras, “Chinelo Novo”, “Coisinha do Pai”, “No Calor dos Salões”, “Samba de Arerê”, “Caciqueando” e “Vou Festejar! Sou Cacique, Sou Mangueira”, samba-enredo de 2012 da Mangueira que homenageou a agremiação.
Mas o Cacique quer público o ano inteiro. Além das apresentações na quadra, ele promove rodas de samba itinerantes em diferentes regiões da cidade e também fora do Rio. Já foi a São Paulo, Campinas e à Baixada Santista. O intuito é atingir pessoas que não teriam fácil acesso a desfiles na Marquês de Sapucaí e a shows de artistas como Xande de Pilares, Dudu Nobre e outros sambistas.
– Muita gente conhece o nome Cacique de Ramos mas não sabe direito o que a gente faz e alcança enquanto polo de cultura e samba de raiz. É necessário levar o Cacique às pessoas – justifica Nascimento.
* Malu Carvalho é aluna do 5° período do curso de Jornalismo e estagiária do Laboratório de Jornalismo do Departamento de Comunicação (LabCom Jornalismo).
“Nasci em Ramos e depois de viver por mais de 16 anos fora do Rio, voltei a morar no bairro. Cresci ouvindo histórias do Cacique na minha família e, apesar de nunca ter frequentado, sabia o que representa para a comunidade da Zona da Leopoldina. Meu interesse aumentou quando percebi que muitas pessoas das zonas Sul e Oeste da cidade nunca tinham ouvido falar do Cacique de Ramos. Esta é uma tentativa de retratar o que é o Cacique e apresentá-lo a um novo público, para que ainda mais pessoas conheçam o que a agremiação representa para a cultura carioca.”
Malu Carvalho