Brenda Gusmão, Enzo Krieger e Malu Carvalho

Maria Immacolata e Ricardo Linhares na Aula Inaugural do DCOM. Crédito: Carmem Petit
A professora Maria Immacolata Vassallo de Lopes, da Universidade de São Paulo (USP), e o autor de novelas Ricardo Linhares, da TV Globo, participaram da Aula Inaugural do Departamento de Comunicação, “A teledramaturgia nos 75 anos da televisão brasileira”. Os dois consideram que a telenovela funciona como um registro que conta a história do país e do que está em andamento no dia a dia da população. Eles analisaram a semelhança dos produtos audiovisuais de TV e streaming, numa onda de “serialização das novelas” e “novelização das séries”. O impacto deste movimento é uma demanda do público por mais emoção nas tramas. Ambos afirmaram que os folhetins ainda são os principais produtos culturais da televisão brasileira.
De acordo com Immacolata, o formato dos folhetins se espalhou mundo afora. A criadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN) e coordenadora do Centro de Estudos do Campo da Comunicação (CECOM) defende que a telenovela se constitui como narrativa da nação e recurso comunicativo. Para Linhares, as novelas ainda são um produto que reforça a identidade nacional no mercado. Segundo o autor, a competição com produtos estrangeiros faz com que não sejam a única para a geração atual.
Na Aula Inaugural, a senhora comentou o fato de a novela ser um espelho da identidade do Brasil. Ela pode contar a história do país e servir como um documento histórico de pesquisa e análise?
Maria Immacolata – Ela espelha e, ao mesmo tempo, refrata. Mas é preciso pensar que é algo que envolve o trabalho da imaginação. O que temos mesmo não é o país real, mas uma imagem dele. E, sim, ela pode ser considerada um documento histórico, em função da crônica diária que traz – que não é um documentário, por exemplo, trata-se de uma história fictícia.
Ricardo Linhares – Sim, a novela retrata o que acontece naquele momento da vida nacional. Pode-se fazer um apanhado das novelas e entender grande parte da trajetória do país. Não falo de novelas ou séries históricas como “Os Rebeldes” ou “No tempo do Imperador”. A novela contemporânea mostra muito bem as temáticas que enfrentamos ou podemos trabalhar em cima. Quem fizer um estudo da novela desde os anos 80, mais ou menos, verá como a telenovela acompanhou a vida nacional. A novela espelha o dia a dia, mas ao mesmo tempo é influenciada pelo que ocorre. Muitas coisas que acontecem de repente no meio de uma novela são inseridas no contexto. Com isto, a importância como documento histórico para o estudo do Brasil aumenta.
Como a telenovela se constitui como narrativa da nação e recurso comunicativo, dois conceitos criados pela senhora?
Immacolata – Os conceitos constituem o que posso chamar de uma teoria da telenovela brasileira. Nós vemos novelas, profissionais, atores, atrizes e, principalmente, o país todos os dias, desde a criação da televisão no Brasil. É um produto tão importante, feito por uma televisão que não deve nada às de fora, e precisa ser estudada, precisa haver uma reflexão, um pensamento próprio em todos os aspectos. A telenovela brasileira, para mim, é um conceito, porque em comparação com outros países, principalmente latino-americanos, a novela é outra. Ela é um paradigma. Existe um reconhecimento, necessário para que haja um sentimento de pertencimento a algo. Milhares, milhões de pessoas assistem ao mesmo tempo, quer dizer, este encontro é um imaginário. É uma nação que está na televisão, um ato muito importante que me leva à questão do recurso comunicativo. A novela mimetiza o dia a dia das pessoas – elas se reconhecem na ficção. Isto é muito diferente do teatro. Estes temas são da vida diária, mas é o melodrama – não é um documentário, senão poderia ser quase como um de tão real que é. Claro que se entende que aquilo é uma ficção, ninguém está, mas o que aconteceu com ela ficou tão colada ao modo de ser, falar e, principalmente, sentir do brasileiro.
Linhares – O brasileiro é latino, e o latino é melodramático, gosta de histórias. Na verdade, contar histórias é algo ancestral, vivo desde o princípio da humanidade. Quando a história é interessante, as pessoas querem ouvir. A telenovela conecta o Brasil e o espectador ao texto, ao produto.
As pessoas costumam afirmar que a novela é um formato típico da América Latina. Em que outros países ela também tem uma presença forte?
Immacolata – Na África, principalmente Angola. Eles tiveram e importam muito da novela brasileira, inclusive por causa da língua. As novelas sul-coreanas – os doramas, por exemplo. O mais longe seria aquilo que faz Bollywood, na Índia – que aliás produz muito mais do que Hollywood. Tivemos um pouco desta coisa diferente em “Caminho das Índias”; começavam a cantar e dançar. São grandes indústrias que fazem histórias com as quais o povo se identifica. Outros países seriam mais de fazer séries, como a Itália. Cada um é interessante, quer fazer um retrato do país.
A novela é um material que reforça a identidade nacional em meio à globalização, em que recebemos muitas informações de fora. Neste cenário, você acha que a importância dela aumenta?
Linhares – Eu acredito que a telenovela brasileira é muito influenciada pelo que vêm de fora, tanto de televisão, quanto de streaming e também de filmes. Mas, ao mesmo tempo, algo que não se dá tanto destaque é que a telenovela brasileira influenciou muito as telenovelas turcas, as telenovelas coreanas (também chamadas doramas). Existe um reconhecimento muito grande lá fora ao que as telenovelas da Globo representaram em termos de teledramaturgia, de inovação de temáticas e de técnica. Houve uma época no streaming, e até no pré-cabo, em que a Globo exportava para mais de 170 países, ou seja, cobre praticamente o mundo inteiro. Estas novelas eram constantemente exportadas, o que também ajudou a formar uma geração, nestes países, que não tinha uma tradição de telenovela, diferente do México e da Colômbia. Eles aprenderam a experiência com a nossa dramaturgia, que influencia a dramaturgia atual deles. Existe uma ponte de mão dupla entre o que recebemos e o que demos e damos.
E como as novas gerações se comportam com relação à telenovela?
Linhares – A novela, na verdade, não é mais um produto tão essencial quanto foi na minha juventude, porque não existia absolutamente nada – só as novelas. Agora, as novas gerações têm acesso a tantas informações que vêm de tantos lugares, e eu, quando tinha 16 anos, só tinha acesso a televisão. Agora, não: a novela é muito importante, mas faz parte de todo um conjunto. Acredito que o público jovem, da mesma maneira que não lê mais jornal – quando lê, o faz pelo celular ou computador, o que significa que mudou – se afastou, e a própria novela passou a não ficar tão interessante para ele, justamente porque há outras opções. Estas novas gerações, quando assistem a novelas, acredita-se que vejam pelo streaming. Em determinados casos, a novela ainda pode ser um lugar de união das pessoas, mas a vida moderna é corrida demais e temos que entender isto.