Ao revisitar a trajetória de Joana Zeferino da Paz, o jornalista e escritor Fábio Gusmão compartilhou com alunos de Comunicação da PUC-Rio os bastidores da série de reportagens que revelou ao país a história da idosa que filmou da própria janela a movimentação do tráfico na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, na Zona Sul do Rio. Publicada em 2005 no caderno especial “Janela Indiscreta”, a denúncia ganhou os principais prêmios do jornalismo brasileiro, virou livro e foi adaptada recentemente para o cinema com Fernanda Montenegro como Dona Joana e Alan Rocha no papel do jornalista. A convite da professora Aline Novaes, Fábio conversou com estudantes da disciplina Teorias do Jornalismo.
Quando você percebeu que estava diante da “história da sua vida”?
Quando levo as fitas para casa e ouço o relato de Dona Joana. Muito mais do que as imagens, o que se passava dentro do apartamento, a vida dela, e o que com a câmera ela passa a relatar – um diário eletrônico mostrando o conflito vivido com o tráfico funcionando ali dia e noite e os efeitos que aquilo causava. Não tem como assistir àquele relato tão visceral, forte, em muitos momentos dramático, em outros mostrava revolta, mas também fragilidade, você percebia a solidão dela e como interagia com aquilo que via e vivia. Não tem como passar por isso sem sentir algo. Em um dos textos que escrevi, digo que ela é uma mulher forjada em coragem. Porque, antes de qualquer coisa, é preciso coragem. E aí fiquei com muita curiosidade de saber a história de vida dela.
Como cultivar um olhar atento em meio a pressões por produtividade e velocidade durante a produção de uma reportagem?
É você ter a humildade de se deixar impactar por tudo, e aí estou falando do cotidiano mesmo. Em um restaurante, por exemplo, eu adoro ouvir a conversa dos outros, porque isto te deixa mais conectado com o ambiente, com as pessoas, com o que está acontecendo. Te deixa mais próximo da vida e da construção de como as pessoas vivem. Ajuda no cotidiano corrido e faz com que a gente mantenha uma conexão com o mundo real. Na redação, a gente tem que produzir com rapidez para ter clique, o que pode desconectar o repórter. Mas se você pratica, faz um exercício buscando o olhar e o ouvido, as sensações do ambiente social que está inserido, não vai perder isto e há mais chance de perceber boas histórias, porque elas passam o tempo inteiro. É aquilo: todo mundo tem uma boa história para contar.
O que foi necessário priorizar na hora de contar a história de Dona Joana?
Na linguagem jornalística, foi necessário ser mais preciso, ter mais critérios na construção de quem era Dona Joana e o quanto a gente podia se aprofundar sobre ela no espaço disponível. A gente está falando de uma edição impressa, não do mundo digital. Se a história dela fosse hoje, haveria mais possibilidades. Dentro da narrativa jornalística, a gente optou por uma construção sobre ela e a visão da janela, em alguns momentos separando isto, e depois em uma construção dela comigo.
Como o livro permitiu aprofundar sobre o caso?
Já no livro, eu aprofundo muito dois momentos: a história de vida dela, porque é fundamental para entender o que a motiva, o que a torna essa mulher corajosa e muito combativa. Ao mesmo tempo, mostro o caminho da pauta até a publicação da história, algo que demandou tempo. A ideia ali era dar os bastidores para que isto servisse não só a estudantes de jornalismo e profissionais da área, mas também para a sociedade de uma forma geral. O livro permite uma história mais dilatada e dá ao leitor a possibilidade de entender como a sociedade é complexa e cria pessoas como Dona Joana.
O que só o cinema conseguiu expressar sobre quem era Dona Joana?
No cinema, os contornos de Dona Joana, principalmente no roteiro e na construção que a dona Fernanda Montenegro deu, mostra o cotidiano dela. Ao mesmo tempo em que era combativa e se irritava, ela tinha a sua sensibilidade, uma pessoa muito solitária. Dona Fernanda faz isto de forma muito sensível. Só pelo que a Dona Joana filmou e narrou, não demonstra quem ela era. A ficção facilita o entendimento da essência dela, que está completamente presente na construção da personagem.
Neste caso, o vínculo entre repórter e fonte acrescentou sobre os limites deste tipo de relação no jornalismo?
No jornalismo, muitas vezes a gente vive as coisas de forma muito intuitiva. Mas existe um pilar fundamental: garantir a vida. A vida humana é sempre mais preciosa, seja de quem for, e temos que nos empenhar para protegê-la. Pensar assim me fez compreender algo essencial: o jornalismo costuma construir personagens como se fossem apensos de uma história, mas, neste caso, a história era a própria pessoa. Era a vida dela. Por isso, parei de usar o termo “personagem”. Precisamos de pessoas reais, que contem melhor as histórias. É por meio delas que contamos — ou deveríamos contar. Não se trata de reinventar a profissão, mas de respeitar os seres humanos que estão ali e construir um jornalismo que realmente impacte e mostre para a sociedade o que estamos vivendo de um jeito que o público se reconheça.