Enzo Krieger

Ana Paula Gonçalves com o livro “O Brasil mostra a sua cara: ‘Vale Tudo’, a telenovela que escancarou a elite e a corrupção brasileira”. Crédito: Nathalia Serena

Ana Paula Gonçalves com o livro “O Brasil mostra a sua cara: ‘Vale Tudo’, a telenovela que escancarou a elite e a corrupção brasileira”. Crédito: Nathalia Serena

A relação do fim da ditadura militar, da redemocratização do país e o audiovisual foi o ponto de partida para a jornalista e pesquisadora Ana Paula Gonçalves desenvolver os temas no doutorado. O caminho foi trilhado a partir da novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. Uma das integrantes do grupo Narrativas Ficcionais da Vida Moderna (NarFic), do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio (PPGCOM/PUC-Rio), Ana Paula lançou em dezembro de 2024 o livro “O Brasil mostra a sua cara: ‘Vale Tudo’, a telenovela que escancarou a elite e a corrupção brasileira”, baseado na sua tese de doutorado, defendida no Departamento de Comunicação. A ideia do livro sempre existiu, incentivada pela orientadora, professora Tatiana Sciciliano, Coordenadora do PPGCOM/PUC-Rio.

No trabalho, a pesquisadora ressalta que a novela é considerada um clássico porque mostra o descaso político e os problemas éticos estruturais do país ao longo da história. Ela considera que as novelas brasileiras podem contar parte da memória do Brasil sem perder a característica principal: ser um entretenimento baseado na ficção. O marco da obra, de acordo com Ana Paula, é apresentar a falta de ética da relação entre o público, o Poder Executivo, e o privado, as empresas. Durante o estudo, a jornalista analisou que os autores estendiam os diálogos dos capítulos para explicar temas como sentido de nacionalidade. E, ao representar uma elite sem escrúpulos, o folhetim expõe um “calcanhar de Aquiles” brasileiro. Para ela, a impressão mais marcante é o sentimento de atualidade da temática central. Com o remake da telenovela da TV Globo, que vai ser exibida a partir de 31 de março, a autora avalia os desafios que a nova versão deve enfrentar para fazer jus ao clássico que “Vale Tudo” é.

Foram dois anos de pesquisa sobre Brasil e mais um pouco sobre telenovelas. Como surgiu a ideia de escrever sobre “Vale Tudo”?

Não entrei no doutorado para falar de “Vale Tudo”, foi uma coincidência, e um processo. Eu queria estudar o Brasil do período final da ditadura militar e do início da redemocratização, e como o brasileiro via aquilo a partir do audiovisual. A Tatiana Sciciliano – que foi incrível desde sempre – foi a minha orientadora e estudamos muito para chegar até o momento de Brasil e televisão, porque a telenovela se confunde com a TV. Fiz um quadro com as novelas que foram exibidas na época e não conseguia fechar um recorte. Um belo dia nos pilotis, virei para a Tatiana e disse: “E se eu falar só de ‘Vale Tudo’, porque trata da corrupção, da crise econômica, disto tudo?”.

Você inicia o final da tese com a definição “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, de Ítalo Calvino. Quais os aspectos que o remake de “Vale Tudo” podem trazer de volta do original e que novidades podem pintar?

São muitas. É um Brasil bastante diferente em muitos aspectos. Por exemplo, as relações homoafetivas – a questão da Laís (Cristina Prochaska) e da Cecília (Lala Deheinzelin) – que naquela época eram um assunto, hoje já não são mais. A própria escolha do elenco, porque em 1988 não existia uma pluralidade; era sempre branco. Atualmente, as telenovelas tentam mudar isso, mostrar um Brasil mais diverso, o que também pode trazer debates interessantes. Eu defendo que “Vale Tudo” é um clássico que faz releituras da realidade, da atualidade. Para ser atual agora, ela vai poder falar do racismo, que não se falava na época, de preconceitos – tem tanta coisa bacana que pode ser explorada. O Brasil é muito rico em assuntos que são perenes em toda a sociedade. A gente ainda tem muita coisa para caminhar, para compreender. E se Manuela Dias quiser trazer a essência de “Vale Tudo”, que era discutir e jogar questões importantes na mesa do brasileiro, ela tem um prato cheio com novas questões, que naquela época não eram permitidas nem pensadas.

Os atores Antonio Pitanga, Bella Campos e Thaís Araújo. Divulgação: TV Globo / Fábio Rocha

Antonio Pitanga, Bella Campos e Taís Araujo nos bastidores da gravação. Divulgação: TV Globo / Fábio Rocha

Como foi o processo de transformar a tese de doutorado num livro? 

Eu agradeço muito, mais uma vez, à Tatiana, minha orientadora, porque sou jornalista, amo escrever, mas sofro demais para fazer textos acadêmicos. O apoio e o respeito da Tatiana por minha escrita mais jornalística foram muito importantes. É claro que tive que seguir regras, porém tive liberdade. Depois que lancei o livro, conversei com algumas pessoas que não são da academia nem de comunicação que falaram: “Nossa, foi muito legal, foi muito bom, havia várias curiosidades, coisas da TV”. Eu queria que fosse uma memória afetiva daquela época, da televisão, das músicas, dos costumes e de como o Brasil se comportava. Ainda tem mais um agravante: terminei de escrever na pandemia. Foi muito natural quando escrevi – já queria que virasse livro. Demorou mais do que eu planejava. Quando adaptei para a obra, mudei pouca coisa, porque finalizei o trabalho com “Amor de Mãe” (trama escrita por Manuela Dias, que atualmente faz a adaptação de “Vale Tudo”) no ar, por exemplo, e foi importante comparar com “Vale Tudo”. Na introdução, falo que é difícil escrever sobre ditadura militar, redemocratização, épocas de esperança, não quis alterar, porque foi uma realidade que a gente viveu ali, que pesou também na minha tese.

Você defende que “Vale Tudo” é um clássico. Fazer um remake de uma grande novela como esta é um risco?

Com toda certeza. É um risco e é corajoso, porque a cobrança e a comparação vão ser imensas. Mas sempre queremos ver clássicos sendo refeitos, então pode ser muito bom. O público e os pesquisadores precisarão ter uma boa vontade de entender que é outra obra para analisar – não dá para comparar o tempo inteiro, senão todo mundo enlouquece. Mas é um grande desafio.

Quais são os desafios que os atores que foram escalados vão ter para poder dar a cara de “Vale Tudo” nesta nova versão?

Eu sou muito radical no sentido de poder dizer, por estudar o assunto, focar em questões raciais, de identidade nacional e tudo, que o brasileiro é racista. A sociedade brasileira é racista, é um racismo estrutural. A questão da Bella Campos e da Taís Araújo esbarra neste racismo. Eu tenho acompanhado os comentários, e as pessoas não sabem explicar porque a Raquel Acioly não poderia ser a Taís. Quando a gente abre para o elenco todo, entram o Cauã Reymond e a Paolla Oliveira. O grande desafio das pessoas é porque “Vale Tudo” é muito lembrada, foi reprisada no canal Viva, está no Globoplay, e é uma obra muito recente – não de tempo, mas na memória. A comparação tem a ver com afeto, mais do que realmente com o talento dos atores. É uma novela que os personagens já receberam críticas e nem foram lá. Foram chamadas de alguns segundos e já falam que o Cauã não está bem no papel. Como ele não está bem no papel, gente? Não começou a novela, né?

O elenco de “Vale Tudo”. Divulgação: TV Globo / Fábio Rocha

Elenco: Solange (Alice Wegmann), Afonso Roitman (Humberto Carrão), Ivan (Renato Góes), Raquel (Taís Araujo), Odete Roitman (Débora Bloch), Maria de Fátima (Bella Campos), Heleninha (Paolla Oliveira), Leila (Carolina Dieckmann), Marco Aurélio (Alexandre Nero) e César (Cauã Reymond). Divulgação: TV Globo / Fábio Rocha

Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basseres foram geniais em mostrar a cara do Brasil na versão original, de 1988. Como Manuela Dias pode adaptar a obra para a realidade que vivemos em 2025?

Seria leviano da minha parte dizer como ela pode fazer, até porque não escrevo novelas. Sei que Manuela Dias escreve bem, mas acredito que vai ter vários desafios, e isto posso responder, porque é um outro Brasil: mais politizado, mais polarizado. Naquela época, estava todo mundo no mesmo barco – sem dinheiro, com a inflação lá em cima, reclamando do governo, pedindo por mudanças. Hoje, a gente tem um país mais dividido, então não sei como ela vai adotar. Eu defendo que “Vale Tudo” é um clássico, trata de assuntos universais – ética, moral, corrupção; são valores que não mudam a essência de acordo com o período político. Acredito que ela pode escrever uma trama falando sobre isto sem entrar numa questão política, mas não tem como saber.

“Vale Tudo” é o terceiro remake feito pela TV Globo em quatro anos, ao lado de “Pantanal” e “Renascer”. Esta febre de releituras aponta uma crise no processo criativo? 

É uma questão complexa. A telenovela tem um espaço grande ainda – e se não tivesse tanto, a Globo não apostaria tanto no produto; ninguém rasga dinheiro. Nos grupos de pesquisa, muitas pessoas debatem que o brasileiro não vê mais novelas, mas assiste a séries. Eu sempre pontuo, quando estou nesses ambientes, que o Brasil vai muito além de Rio de Janeiro e São Paulo: é um país continental, no qual nem sempre a internet e a Netflix chegam. “Beleza Fatal”, da Max, é um sucesso, mas da nossa bolha. A questão do remake tem a ver justamente com uma crise de identidade. “Pantanal” foi a única que se justificou, porque realmente não havia como rever a antiga, muitas coisas foram perdidas, não existia a obra inteira e foi uma novela emblemática – valeu realmente a pena fazer. Eu achei que refazer “Renascer” foi muito recente, estranhei – tanto que não foi nenhum grande sucesso de audiência. E aí, a gente vai para “Vale Tudo”, aquele novelão. Imagino que a TV Globo escolheu a novela mais emblemática dela para poder fazer uma grande comemoração do aniversário da emissora. Acho válido, mas também penso que a crise dos remakes esbarra muito nos autores que tentam agradar um público que tem preconceito com novela. Isto é um fato, sempre existiu, e sempre existiu o noveleiro. Hoje, as pessoas têm uma infinidade de coisas para assistir e um momento diferente para ver. Tentar conquistar a galera que não vê novela é um erro. Talvez, a questão do remake seja lembrar, fazer com que os autores voltem a escrever e reescrever grandes folhetins que vão prender o público novamente.

Plataformas de streaming, doramas e novelas turcas são novidades no cenário brasileiro. Qual é o impacto da presença destes produtos no território nacional?

Hoje, há espaço e público para tudo. Minha mãe vê dorama, mas novela também. O dorama é uma linguagem diferente e chegou com força total. É diferente de “Beleza Fatal”, que já é uma coisa mais pesada, com atores brasileiros. A novela turca e o dorama vieram, e a tendência é: daqui a pouco vai ter outra moda, e estas vão continuar. Elas vêm só para somar, porque é muita coisa para assistir. Há mais opções do que tempo para ver.

“Vale Tudo” já era sua novela favorita?

Já era, com certeza. Era uma das novelas que eu mais gostava. Eu já fui muito noveleira quando era mais nova, gostava muito. Eu tinha 12 anos na época, mas me lembro muito bem da novela e da trilha sonora, principalmente. É uma lembrança afetiva mesmo.