Em meados dos anos 1990, reuni três amigos em casa para ver dois filmes brasileiros que tinham marcado a década anterior: Jango (1984), de Silvio Tendler, e Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho. A ideia da reunião surgiu porque, anos antes, Fernando Collor tinha renunciado à presidência depois de uma série de denúncias de corrupção envolvendo seu governo e porque as ruas do país tinham sido tomadas por jovens que pediam o impeachment (os “caras-pintadas”). Mas havia uma terceira razão para o encontro. Estávamos lendo Entre o Passado e o Futuro, livro de Hannah Arendt, para o curso de mestrado na ECO\UFRJ.
Vimos os dois filmes no aparelho de VHS da sala. A sensação era de mergulhar em duas histórias complementares: uma sobre a notória figura do ex-presidente João Goulart, derrubado pelo golpe militar, em 1964, e outra sobre camponeses anônimos esmagados pela mesma engrenagem da ditadura. Enquanto Jango destacava a trajetória de um líder nacional, popular, e os fatos políticos que marcaram a história oficial, Cabra nos puxava para o chão de terra da vida dos trabalhadores pobres do interior do país. O contraste era pedagógico: de um lado, o presidente deposto porque seu governo era uma ameaça à ordem estabelecida (as “reformas de base”) e cuja memória tinha sido sequestrada; de outro, os pobres do campo, indivíduos sem lugar nos livros de história, mas cujos corpo e voz carregavam uma história silenciada.
Ao final, entre um gole e outro de cerveja, estávamos comovidos. Jango emocionava pelo resgate da democracia perdida e pelo gesto político de devolver ao espectador, ao público das salas de cinema, um líder político roubado pelo golpe. Cabra tocava fundo por exibir a dignidade do camponês anônimo, a força de seu depoimento e, ainda, a destruição de uma família por conta da ditadura. Revelavam, de modos diferentes, a importância de transformar o passado em consciência política. Nos convidavam a ver o Brasil dos ricos e o Brasil dos precarizados como alguma coisa que nós, espectadores, precisaríamos juntar. No futuro.
Silvio Tendler, colega e professor de cinema no departamento de Comunicação da PUCRio, nos deixa hoje. Sua morte, porém, não interrompe o diálogo que sua obra continua a travar com o presente.
Por Andrea França
Professora da graduação e da Pós-graduação em Comunicação do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, com pesquisa em cinema e audiovisual.
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